sexta-feira, 21 de setembro de 2007

LEMBRANÇAS DA CRISTINA

Cristina não saberá que me lembro dela. Lembro e muito. Cristina morreu faz anos. Era uma figura de mulher excepcional. Foi minha colega de trabalho no SESC. Sempre chegava atrasada para desespero de seus chefes e com aquele ar cansado de quem tinha ido dormir tarde.

Um dia chegou ao trabalho estremunha como sempre dizendo que eu me parecia com o Millor Fernandes com quem estivera numa boate entre amigos. Não me atrevi a perguntar por que viés do grande humorista se dava aquela parecença. Se dissesse que era pelo lado da fisionomia eu me sentiria um pouco frustrado. Hoje quando me vejo no espelho, tenho quase certeza que ela diria que a semelhança era pela cara mesmo. Nem sonhar que fosse pelo talento do humorista. Ou quem sabe, porque naquela época eu era bem metido a engraçadinho. Cristina era magnânima.

Não era mulher de rara beleza. Tinha, porém, aquele condão feminino de encantar as pessoas de espírito solerte. Longe de mim pensar que fosse um deles. Era incrível seu rol de amizades entre os artistas de todos os gêneros que pontificavam naquele inicio dos Anos de Chumbo, quando começava a se firmar o poder arbitrário dos militares aboletados no poder da nossa sempre vulnerável democracia. Essas lembranças me tomaram de assalto ao receber um e-mail do um antigo colega de trabalho que me precedeu na amizade com a Cristina e dela conservou também um punhado de boas lembranças. Revelou-me que quando a conheceu era namorada do cantor Caetano Zema então começando a ter sucesso na MPB daquela época. Parece que Zena não resistiu ao tempo... eclipsou-se nos calcanhares da fama.

Escapulindo aos deveres do serviço era delicioso ir tomar um cafezinho com a Cristina na esquina da São Luiz com a Praça da Biblioteca por onde trafegava a mocidade boemia e engajada daqueles dias. No átimo entre um café e outro sua companhia era sempre uma caixinha de surpresas. Seu visgo de mulher sedutora atraia sempre um desfile das celebridades emergentes naqueles meus dias deslumbramento com a grande cidade. Vinham ter com ela com a descontração das velhas amizades nomes ainda não tão famosos como Ronaldo Boscoli e Geraldo Vandré. Falavam de nomes ainda não tangidos pelas fímbrias da fama como Maysa, Tom Jobim, e Vinícius ou, então, das arbitrariedades dos militares. Algum amigo caído nas garras da repressão. Eram tempos que ainda não se combatiam com fuzis nem metralhadoras, mas com a letra das canções de protesto.

Cristina era íntima do pessoal da Bossa Nova com quem convivia em noites de vinho e de rosas para no dia seguinte “bater cartão” e encarar um trabalho de melancólica burocracia. Chegava mal dormida, porém nunca com a empáfia de sua intimidade com a fama.
Uma noite convidou-me para um gole no bar do Teatro Ruth Escobar onde levavam a peça Hair. Segredou-me que esperaria um namorado e não queria esperar sozinha. E o pior: talvez eu tivesse que voltar sozinho para a cidade. Tive. O namorado chegou para os mistérios da noite onde, certamente, não haveria lugar para mim. O namorado era o Nuno Leal Maia no fragor de sua exuberante mocidade.

Conheci dois dos maridos da Cristina, ambos de marcante atuação naquele pequeno mundo da intelectualidade paulistana dos anos sessenta. Um deles era o Massao Ono importante editor e animador cultural no mundo livreiro.Foi o primeiro a editar o meu amigo, poeta “beat-nick”, Roberto Piva. O outro foi Lúcio Kovarick professor da Usp. Visitei-a nesse dois casamentos ainda como seu colega de trabalho. Numa noite, no apartamento da rua Cesário Mota tive duas surpresas. A primeira foi a sopa de tomate feita em horas tardias pelo Carlos Alfredo e a segunda foi quando alta madrugada toca a campainha e chega Rogério Sganzerla já famoso com seu filme O Bandido da Luz Vermelha.

Cristina era assim, uma abelha mestra cercada de zangões da mais alta estirpe cultural daqueles dias em que a mocidade ia passando célere sem que percebêssemos as marcas que deixaria em nossas lembranças. A vida para nós ainda era conjugada no presente contínuo dos verbos.
Há pouco tempo lendo um livro de Mário Prata, lá encontro Cristina no rol de suas amizades mais indeléveis. Cristina não escrevia, mas estava em todos os lugares e produzia histórias. Mesmo sendo seu amigo bissexto vivi tantas com ela.

Um dia nossos caminhos se separaram. Ela deixou o SESC onde continuei e não soube mais de suas andanças. Vim a saber que seu pai era médico e que sua mãe se chamava Cleópatra – nome que detestava, com toda razão. A Cristina, sim, tinha algo da rainha do Egito que encantava os homens e destronava heróis da história. Cristina deve ter se destronado a si própria nas asas dos sonhos dourados que vivemos letárgicos na penumbra dos bares e no convívio com os anjos que trazem a beleza da arte e o delírio da vida no cortejo que seus vôos noturnos.

Soube muito vagamente que faleceu em Brasília vítima de um desses males que a gente mesmo inocula na carne como um avatar de suicídio involuntário e que nos exonera da vida. A tristeza? A bebida? A desesperança? Que vontade louca me deu de ver a Cristina... agora só no céu, se tivermos a sorte de ser escalados para essa viagem.
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