sexta-feira, 21 de setembro de 2007

AS CINZAS DO MEU IRMÃO


Na vida cada um é cada um. Verdade que demoramos a aprender. Queremos que os outros sejam o que deles esperamos. Esse é o fundamento da grande batalha humana. Meu irmão Jayro acaba de falecer e escolheu na morte a mesma solidão que cultivou na vida. Pediu aos filhos que cremassem seu corpo, quem sabe para não compartilhar na morte das companhias que sempre recusou em vida. Era um solitário por índole.

Nunca conseguiu conviver com os pais, com os irmãos, com a mulher, nem com os filhos. Com os amigos, às vezes. É certo que não agia assim por maldade ou desídia. Apenas queria ser só. Viveu isolado de tudo e de todos. Passava anos sem aparecer. Deus sabe por onde andaria. Não tinha outros vícios senão o de ser sozinho. Nem por isso foi um ermitão ou um inútil. Apenas não se deixava estimar. As pessoas tinham por ele um respeito quase religioso pelo algo de messiânico que moldava sua conduta. Se fosse um pregador arrastaria multidões. Tinha carisma.

Plantou cafezais, cultivou pastagens, estudou a terra que sulcava reverente com as mãos e com as máquinas. Ao mesmo tempo era um ser primitivo e também um homem de conhecimentos. Sua solidão o levou sempre a preferir ser empregado que patrão. Não gostava de mandar no que fosse dele, porém mandava bem no que era dos outros. Por isso era requisitado. E dava conta do recado. Foi vereador mas não gostava de associar-se a ninguém, nem a nada. Não queria mais do que ser ele mesmo. Pensava como Ibsen que o homem só é o mais forte. Agia com retidão para não fazer concessões.

Não foi fraterno com seus pais, com os irmãos, com seus filhos nem consigo mesmo. Era coerente no seu voluntário isolamento. Viu a sorte escapar-lhe pelos dedos inúmeras vezes e a dor ocupar o abismo que as tragédias abrem em nossos corações. Um de seus filhos suicidou-se jovem ainda. Gesto que abriga um infinito de motivações e nenhuma definitiva. A verdade se vai com o ato tresloucado.

Nunca o vi chorar nem gargalhar. Apenas sorrir. Talvez não quisesse ficar refém da felicidade, nem exaurir-se em sua busca. Acredito, como irmão, que a alegria o incomodasse. A ventura é como uma iguaria saborosa que uma vez degustada nos faz escravos da culinária que a produziu porque queremos prová-la sempre outra vez. E sofremos quando a receita desanda.
Uma vez uma de suas filhas me disse “nem sei se tive um pai”. Tinha razão, porque também não tenho certeza de que foi meu irmão, tão separados vivemos sempre.

Morreu no seio de sua segunda família e pediu que cremassem seu corpo. Quis continuar só na morte sem deixar vestígios que fossem como pegadas que seguidas poderiam levar a ele. Não quis compartilhar de nenhum jazigo coletivo. Pediu que suas cinzas fossem espargidas num resto de floresta perto da qual consumiu seus últimos dias para voltar a reintegra-se à Natureza que sempre amou e de onde saiu um dia na forma humana que lhe deu nossa mãe que cada um de nós amou a seu jeito e ele ao seu. Nunca fez alarde do seu carinho que ela esperava reticente pedindo que compreendêssemos porque ele era assim... E assim era mesmo. Ele era o Jayro que uma vez viajou quilômetros para me levar ao cinema, o que não conseguiu, produzindo em mim a mais forte recordação que tenho dele. Recordação na forma de uma saudade que hoje, na velhice e na doença , me faz lembrar dele por algo que me quis fazer e não fez.
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