CARO JOAQUIM
Quando chove na madrugada e o céu amanhece nublado, baixa uma tristeza infinita aqui na chácara que inunda meu coração. Subo a pequena rampa que leva ao portão de entrada, seguido pelo atropelo dos cães e tenho vontade de chorar. Às vezes choro sentado num monturo de grama. As lágrimas são um bom analgésico e não têm tarja preta. Nem contra-indicação. Os cães parecem perceber meu desalento e silenciam à minha volta. Lambem minha mão como se fosse um abraço. Outros apenas olham sem entender o mistério da alma humana. Ou compreendem no seu silêncio. Depois me convocam a uma reação. Começam a correr e olhar como se me chamassem. Volto com eles e a vida continua.
Fico pensando nas coisas que fiz e nas coisas que deixei de fazer. Aquelas que fiz bem e aquelas que fiz mal. O saldo negativo sempre é maior. Não diria, como os falsos otimistas, que se nascesse de novo fariam tudo, outra vez, do mesmo jeito. Não, não faria. Não me arrependo do que fiz, porque o arrependimento é uma tolice. Não corrige nada. A vida é como a roleta: o jogo que foi feito, feito está. E se pudesse refazer alguma coisa, não sei como faria. Não sei onde erraria de novo nem onde corrigiria o que fiz de errado. Uma vida não se corrige. O corrupiê nunca volta atrás.
Sua carta, Joaquim, muito me entristeceu. Não só por você, mas pelo muito que nela me refleti. Você lamenta tantas coisas e percebo que também tenho os mesmos enredos a lamentar. Na balança da vida você teria mais motivos que eu para se alegrar. Uma família com filhos e netos. Uma carreira brilhante de professor. Um título de cidadão honorário que é o reconhecimento das fagulhas de seu amor divididas com seus alunos, pais de alunos e concidadãos desde que chegou á cidade de Guará que adotou como sua. A cidade foi reconhecida pelos anos de labuta que a ela dedicou. Quer melhor homenagem que o apodo de “professor saudade” que lhe foi outorgado pelos seus alunos ? Creio que tenho um quinhão nessas saudades pelo muito que vivemos juntos em nossos tempos de estudantes em Bauru e nossas tíbias aventuras de mocidade, inclusive, a temeridade de subir a um palco para representar autores famosos nos nossos arroubos de teatro estudantil. Até que fizemos sucesso, não fizemos? “Os Cegos” do Ghelderode, lembra-se?
Divago e volto a pensar na felicidade. Será que a parcela de infelicidade que experimentos hoje são os juros que deixamos de pagar pelos saldos de felicidades de ontem? Será que há um preço a pagar pelas alegrias que vivemos despretensiosamente? Ou será tudo culpa da idade que nos assalta como um malfeitor a nos golpear na calada da noite? Sei que passarei por este mundo sem compreender muita coisa. Até mesmo certas coisas que o conhecimento explica e o meu entendimento, muitas vezes não alcança.
Fico feliz (olha aí a felicidade que também nos assalta por algum flanco inesperado) por saber que você guarda de mim as mesmas lembranças que guardo de você. Lembranças hilárias, na maioria das vezes, que se transformaram em chistes que hoje contamos como se fossem piadas. Pelo menos para nós o foram, sob muitos aspectos. Também vivemos na lembrança dos amigos, como morremos no esquecimento deles mesmo. Neste instante me lembro de um filme de suspense e mistério que vimos há muitos anos no velho e hoje inexistente Cine Bauru e cuja charada do enredo você matou antes do desfecho final. Lembra-se? “As Diabólicas” do Henry-Geoges Clouzot.
Alguns minutos – e minutos num filme de mistério é uma eternidade – antes que o mistério se revelasse você deu um salto na poltrona e gritou: “matei, matei a charada”. Claro que não privou os espectadores vizinhos do prazer da revelação do enigma, mas seu “achado” foi o comentário daquela noite. Estou lhe enviando o filme para que lembremos juntos esse naco de saudades. Isso não nos tornará nem mais nem menos felizes. Mas poderá ser uma boa e saudosa memória. Mesmo porque a felicidade é como está inscrita na última cena de “Édipo Rei”: - “ninguém pode se considerar feliz antes que o pano baixe sobre o espetáculo de nossas vidas”.
Um grande abraço.
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PREZADO AMIGO,
Juvenal, meu único e verdadeiro amigo. Tive, em toda a minha vida de 71 anos, dois amigos: o Bodé e você. O Bodé foi toda a memória da minha tão solitária infância. Preencheu a falta de carinho, de companhia, de família, de uma meninice vazia de amor. Você foi o irmão que não tive, a compreensão que me faltou, e companheiro de toda minha juventude e a presença sempre constante ontem, hoje, agora e sempre. Quanto de minha atribulada história está no arquivo de sua memória? Quantos dos meus sentimentos estão no recanto mais afetuoso de seu afetuoso coração solidário e solitário. Quanto encanto e desencanto reparti com seu desencanto e canto? Juvenal, juvenil, você é símbolo de toda minha desvairada juventude. Eu escrevi você É e não FOI. Por isso, você, na minha memória e no meu coração sempre será, até quando eu já não FOR.
Não sou, portanto, meu amigo, refratário ao seu desejo de contatar-me por qualquer motivo, de qualquer lugar, a qualquer momento. Jamais terei remordimentos saudosistas vindos de você, porque sei que me estima como sou e como sempre serei, exclusivamente, para minha memória e para minha alegria.
Quero, ainda, neste momento, agradecer-lhe, não apenas o DVD, mas, principalmente por causa da lembrança. Em mim você sempre terá com quem repartir seus anseios e desejos nos momentos vazios de nosso envelhecimento. Aos “amigos” que se escafederam, seu desprezo e sua indiferença. A mim e aos seus cães, sua saudade.
Estou enviando-lhe um livro despretensioso, onde presto homenagem àqueles a quem, em algum momento especial de suas vidas, dediquei algum poema ou alguma canção, como forma de solidariedade ou contentamento. São poemas e canções exclusivos - portanto, contextuais. Você será exceção, pois somente os homenageados receberam um exemplar. Foi uma forma de conseguir ficar, quando eu houver partido para a saudade. Espero que o leia com ternura, pois foi somente por ternura que escrevi e dediquei à minha família e a pessoas especiais em momentos especiais.
Juvenal, para encerrar, quero segredar-lhe que me apóio em duas pilastras neste final de vida: Paciência e Coragem. Paciência, para suportar, coragem, para enfrentar. Eu e a Gleiyde desejamos-lhe, com muito afeto e saudade, que nossas colunas possam sustentá-lo também.
Joaquim
Guará, 21 de junho de 2.007
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Quando chove na madrugada e o céu amanhece nublado, baixa uma tristeza infinita aqui na chácara que inunda meu coração. Subo a pequena rampa que leva ao portão de entrada, seguido pelo atropelo dos cães e tenho vontade de chorar. Às vezes choro sentado num monturo de grama. As lágrimas são um bom analgésico e não têm tarja preta. Nem contra-indicação. Os cães parecem perceber meu desalento e silenciam à minha volta. Lambem minha mão como se fosse um abraço. Outros apenas olham sem entender o mistério da alma humana. Ou compreendem no seu silêncio. Depois me convocam a uma reação. Começam a correr e olhar como se me chamassem. Volto com eles e a vida continua.
Fico pensando nas coisas que fiz e nas coisas que deixei de fazer. Aquelas que fiz bem e aquelas que fiz mal. O saldo negativo sempre é maior. Não diria, como os falsos otimistas, que se nascesse de novo fariam tudo, outra vez, do mesmo jeito. Não, não faria. Não me arrependo do que fiz, porque o arrependimento é uma tolice. Não corrige nada. A vida é como a roleta: o jogo que foi feito, feito está. E se pudesse refazer alguma coisa, não sei como faria. Não sei onde erraria de novo nem onde corrigiria o que fiz de errado. Uma vida não se corrige. O corrupiê nunca volta atrás.
Sua carta, Joaquim, muito me entristeceu. Não só por você, mas pelo muito que nela me refleti. Você lamenta tantas coisas e percebo que também tenho os mesmos enredos a lamentar. Na balança da vida você teria mais motivos que eu para se alegrar. Uma família com filhos e netos. Uma carreira brilhante de professor. Um título de cidadão honorário que é o reconhecimento das fagulhas de seu amor divididas com seus alunos, pais de alunos e concidadãos desde que chegou á cidade de Guará que adotou como sua. A cidade foi reconhecida pelos anos de labuta que a ela dedicou. Quer melhor homenagem que o apodo de “professor saudade” que lhe foi outorgado pelos seus alunos ? Creio que tenho um quinhão nessas saudades pelo muito que vivemos juntos em nossos tempos de estudantes em Bauru e nossas tíbias aventuras de mocidade, inclusive, a temeridade de subir a um palco para representar autores famosos nos nossos arroubos de teatro estudantil. Até que fizemos sucesso, não fizemos? “Os Cegos” do Ghelderode, lembra-se?
Divago e volto a pensar na felicidade. Será que a parcela de infelicidade que experimentos hoje são os juros que deixamos de pagar pelos saldos de felicidades de ontem? Será que há um preço a pagar pelas alegrias que vivemos despretensiosamente? Ou será tudo culpa da idade que nos assalta como um malfeitor a nos golpear na calada da noite? Sei que passarei por este mundo sem compreender muita coisa. Até mesmo certas coisas que o conhecimento explica e o meu entendimento, muitas vezes não alcança.
Fico feliz (olha aí a felicidade que também nos assalta por algum flanco inesperado) por saber que você guarda de mim as mesmas lembranças que guardo de você. Lembranças hilárias, na maioria das vezes, que se transformaram em chistes que hoje contamos como se fossem piadas. Pelo menos para nós o foram, sob muitos aspectos. Também vivemos na lembrança dos amigos, como morremos no esquecimento deles mesmo. Neste instante me lembro de um filme de suspense e mistério que vimos há muitos anos no velho e hoje inexistente Cine Bauru e cuja charada do enredo você matou antes do desfecho final. Lembra-se? “As Diabólicas” do Henry-Geoges Clouzot.
Alguns minutos – e minutos num filme de mistério é uma eternidade – antes que o mistério se revelasse você deu um salto na poltrona e gritou: “matei, matei a charada”. Claro que não privou os espectadores vizinhos do prazer da revelação do enigma, mas seu “achado” foi o comentário daquela noite. Estou lhe enviando o filme para que lembremos juntos esse naco de saudades. Isso não nos tornará nem mais nem menos felizes. Mas poderá ser uma boa e saudosa memória. Mesmo porque a felicidade é como está inscrita na última cena de “Édipo Rei”: - “ninguém pode se considerar feliz antes que o pano baixe sobre o espetáculo de nossas vidas”.
Um grande abraço.
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PREZADO AMIGO,
Juvenal, meu único e verdadeiro amigo. Tive, em toda a minha vida de 71 anos, dois amigos: o Bodé e você. O Bodé foi toda a memória da minha tão solitária infância. Preencheu a falta de carinho, de companhia, de família, de uma meninice vazia de amor. Você foi o irmão que não tive, a compreensão que me faltou, e companheiro de toda minha juventude e a presença sempre constante ontem, hoje, agora e sempre. Quanto de minha atribulada história está no arquivo de sua memória? Quantos dos meus sentimentos estão no recanto mais afetuoso de seu afetuoso coração solidário e solitário. Quanto encanto e desencanto reparti com seu desencanto e canto? Juvenal, juvenil, você é símbolo de toda minha desvairada juventude. Eu escrevi você É e não FOI. Por isso, você, na minha memória e no meu coração sempre será, até quando eu já não FOR.
Não sou, portanto, meu amigo, refratário ao seu desejo de contatar-me por qualquer motivo, de qualquer lugar, a qualquer momento. Jamais terei remordimentos saudosistas vindos de você, porque sei que me estima como sou e como sempre serei, exclusivamente, para minha memória e para minha alegria.
Quero, ainda, neste momento, agradecer-lhe, não apenas o DVD, mas, principalmente por causa da lembrança. Em mim você sempre terá com quem repartir seus anseios e desejos nos momentos vazios de nosso envelhecimento. Aos “amigos” que se escafederam, seu desprezo e sua indiferença. A mim e aos seus cães, sua saudade.
Estou enviando-lhe um livro despretensioso, onde presto homenagem àqueles a quem, em algum momento especial de suas vidas, dediquei algum poema ou alguma canção, como forma de solidariedade ou contentamento. São poemas e canções exclusivos - portanto, contextuais. Você será exceção, pois somente os homenageados receberam um exemplar. Foi uma forma de conseguir ficar, quando eu houver partido para a saudade. Espero que o leia com ternura, pois foi somente por ternura que escrevi e dediquei à minha família e a pessoas especiais em momentos especiais.
Juvenal, para encerrar, quero segredar-lhe que me apóio em duas pilastras neste final de vida: Paciência e Coragem. Paciência, para suportar, coragem, para enfrentar. Eu e a Gleiyde desejamos-lhe, com muito afeto e saudade, que nossas colunas possam sustentá-lo também.
Joaquim
Guará, 21 de junho de 2.007
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