sábado, 22 de setembro de 2007

O CÃO E SEUS CONTRÁRIOS


Gosto de escrever sobre os cães. Mais que escrever gosto deles. Tanto gosto que queria ser um. São seres excepcionais. Não há entre os irracionais quem se iguale a eles. E olhem lá que podemos incluir nesse conceito muitos de nós mesmos – os racionais. Os cães possuem todas as ferramentas de uma fera. Pouco diferem de um leão ou de um tigre na capacidade de agredir e matar. Se duvidarem ponham a mão na boca de um deles, num momento de mau humor e sem antes construir um pequeno lastro de amizade. Como todos nós humanos eles selecionam com quem querem ser dóceis e a quem aplicarão suas capacidades ancestrais de defesa e agressividade. Com a diferença que se entregam incondicionalmente a quem defendem e agridem sem a menor premeditação. Sabem a força que têm e a usam na medida exata de seus deveres de fidelidade e obediência.

Os cães, entretanto, carregam consigo contrários abissais. Para alguns são anjos, para outros demônios. Tal e qual Gabriel e Lúcifer fundidos numa mesma entidade. No pitoresco linguajar nordestino “cão” é sinônimo de Demônio enquanto que pode ser também o símbolo angelical da fidelidade.

Quer exemplo melhor do que duas posturas antagônicas lavradas pelas figuras nacionais de Waldick Soriano e Rogério Magri? –
Aquele ministro do Collor, lembram-se - O primeiro todos conhecem por ser um cantor popular, ainda que meio esquecido hoje em dia. O segundo, só para lembrar, foi um controvertido Ministro do Trabalho que ganhou fama pelas presepadas que aprontou deixando um rastilho de anedotas e cafés no seu curto mandato.

Pois bem, o Wandick, em uma de suas mais populares canções diz que “não quer ser cachorro, não”. Não quer ser tratado por sua amada como um vira-latas qualquer. E com isso lança nos seus versos a pior das idéias que se pode impingir a esse animal tão cheio de virtudes. O cachorro de Wandick é aquele ser abjeto de magreza impar, sarnento e pulguento, abandonado e escorraçado pelas ruas onde perambula em busca de um naco de comida para saciar sua fome. Infelizmente esse cão também existe vitimado, justamente, por aqueles que ele quer defender e que os abandona covardemente. Wandick não quer ser esse cachorro, não.

No outro extremo dessa corrente de tantos elos na maneira de avaliar o melhor e muitas vezes o mais sofrido dos amigos do homem, está o ex-ministro Rogério Magri forjador de tantas anedotas involuntárias. Ao ser flagrado por jornalistas levando indevidamente seu cachorro ao veterinário no carro oficial do ministério que presidia aos trancos e barrancos, e advertido de que o carrão era para transportar autoridades como ele, saiu-se com esta: “mas cachorro também é gente”. E foi bater direto no conceito do cão que é o mais especial dos animais de quem falamos. Para aquele homem de idéias curtas e, certamente, de coração largo, o cão é tão humano nas suas virtudes que chega a ser gente. Sem tirar nem por.

Eu não tenho nada contra e nem reclamaria dos impostos que paguei e que certamente ajudaram a pagar a gasolina daquele périplo do Sr. Ministro a caminho do veterinário. Acho que a despesa foi bem aplicada. Melhor e infinitamente menor de quando transporta políticos corruptos com suas sacolas de dinheiro subtraídas daqueles “humanos” que morrem desassistidos nos corredores dos hospitais do governo. Fiquemos tranqüilos porque não há cão corrupto. E se algum mal podem fazer inconscientemente é por culpa de seus donos que não souberam tê-los como companheiros.Os cães são simples como anjos. Ingênuos como os néscios. Fieis como só eles mesmos. Sem comparação.

Esta crônica eu dedico ao Black, Fany, Raja (na foto) Toby,Lana, Flicka, Rick, Rey (Reymond) e Flicka - esta última exilada em outras paragens porque disputava, literalmente, com unhas e dentes a prioridade em ficar a meu lado. Ciumenta como como um Otelo de rabo..

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

CORRESPONDENCIA ATIVA E PASSIVA



CARO JOAQUIM
Quando chove na madrugada e o céu amanhece nublado, baixa uma tristeza infinita aqui na chácara que inunda meu coração. Subo a pequena rampa que leva ao portão de entrada, seguido pelo atropelo dos cães e tenho vontade de chorar. Às vezes choro sentado num monturo de grama. As lágrimas são um bom analgésico e não têm tarja preta. Nem contra-indicação. Os cães parecem perceber meu desalento e silenciam à minha volta. Lambem minha mão como se fosse um abraço. Outros apenas olham sem entender o mistério da alma humana. Ou compreendem no seu silêncio. Depois me convocam a uma reação. Começam a correr e olhar como se me chamassem. Volto com eles e a vida continua.
Fico pensando nas coisas que fiz e nas coisas que deixei de fazer. Aquelas que fiz bem e aquelas que fiz mal. O saldo negativo sempre é maior. Não diria, como os falsos otimistas, que se nascesse de novo fariam tudo, outra vez, do mesmo jeito. Não, não faria. Não me arrependo do que fiz, porque o arrependimento é uma tolice. Não corrige nada. A vida é como a roleta: o jogo que foi feito, feito está. E se pudesse refazer alguma coisa, não sei como faria. Não sei onde erraria de novo nem onde corrigiria o que fiz de errado. Uma vida não se corrige. O corrupiê nunca volta atrás.
Sua carta, Joaquim, muito me entristeceu. Não só por você, mas pelo muito que nela me refleti. Você lamenta tantas coisas e percebo que também tenho os mesmos enredos a lamentar. Na balança da vida você teria mais motivos que eu para se alegrar. Uma família com filhos e netos. Uma carreira brilhante de professor. Um título de cidadão honorário que é o reconhecimento das fagulhas de seu amor divididas com seus alunos, pais de alunos e concidadãos desde que chegou á cidade de Guará que adotou como sua. A cidade foi reconhecida pelos anos de labuta que a ela dedicou. Quer melhor homenagem que o apodo de “professor saudade” que lhe foi outorgado pelos seus alunos ? Creio que tenho um quinhão nessas saudades pelo muito que vivemos juntos em nossos tempos de estudantes em Bauru e nossas tíbias aventuras de mocidade, inclusive, a temeridade de subir a um palco para representar autores famosos nos nossos arroubos de teatro estudantil. Até que fizemos sucesso, não fizemos? “Os Cegos” do Ghelderode, lembra-se?
Divago e volto a pensar na felicidade. Será que a parcela de infelicidade que experimentos hoje são os juros que deixamos de pagar pelos saldos de felicidades de ontem? Será que há um preço a pagar pelas alegrias que vivemos despretensiosamente? Ou será tudo culpa da idade que nos assalta como um malfeitor a nos golpear na calada da noite? Sei que passarei por este mundo sem compreender muita coisa. Até mesmo certas coisas que o conhecimento explica e o meu entendimento, muitas vezes não alcança.
Fico feliz (olha aí a felicidade que também nos assalta por algum flanco inesperado) por saber que você guarda de mim as mesmas lembranças que guardo de você. Lembranças hilárias, na maioria das vezes, que se transformaram em chistes que hoje contamos como se fossem piadas. Pelo menos para nós o foram, sob muitos aspectos. Também vivemos na lembrança dos amigos, como morremos no esquecimento deles mesmo. Neste instante me lembro de um filme de suspense e mistério que vimos há muitos anos no velho e hoje inexistente Cine Bauru e cuja charada do enredo você matou antes do desfecho final. Lembra-se? “As Diabólicas” do Henry-Geoges Clouzot.
Alguns minutos – e minutos num filme de mistério é uma eternidade – antes que o mistério se revelasse você deu um salto na poltrona e gritou: “matei, matei a charada”. Claro que não privou os espectadores vizinhos do prazer da revelação do enigma, mas seu “achado” foi o comentário daquela noite. Estou lhe enviando o filme para que lembremos juntos esse naco de saudades. Isso não nos tornará nem mais nem menos felizes. Mas poderá ser uma boa e saudosa memória. Mesmo porque a felicidade é como está inscrita na última cena de “Édipo Rei”: - “ninguém pode se considerar feliz antes que o pano baixe sobre o espetáculo de nossas vidas”.
Um grande abraço.
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PREZADO AMIGO,
Juvenal, meu único e verdadeiro amigo. Tive, em toda a minha vida de 71 anos, dois amigos: o Bodé e você. O Bodé foi toda a memória da minha tão solitária infância. Preencheu a falta de carinho, de companhia, de família, de uma meninice vazia de amor. Você foi o irmão que não tive, a compreensão que me faltou, e companheiro de toda minha juventude e a presença sempre constante ontem, hoje, agora e sempre. Quanto de minha atribulada história está no arquivo de sua memória? Quantos dos meus sentimentos estão no recanto mais afetuoso de seu afetuoso coração solidário e solitário. Quanto encanto e desencanto reparti com seu desencanto e canto? Juvenal, juvenil, você é símbolo de toda minha desvairada juventude. Eu escrevi você É e não FOI. Por isso, você, na minha memória e no meu coração sempre será, até quando eu já não FOR.
Não sou, portanto, meu amigo, refratário ao seu desejo de contatar-me por qualquer motivo, de qualquer lugar, a qualquer momento. Jamais terei remordimentos saudosistas vindos de você, porque sei que me estima como sou e como sempre serei, exclusivamente, para minha memória e para minha alegria.
Quero, ainda, neste momento, agradecer-lhe, não apenas o DVD, mas, principalmente por causa da lembrança. Em mim você sempre terá com quem repartir seus anseios e desejos nos momentos vazios de nosso envelhecimento. Aos “amigos” que se escafederam, seu desprezo e sua indiferença. A mim e aos seus cães, sua saudade.
Estou enviando-lhe um livro despretensioso, onde presto homenagem àqueles a quem, em algum momento especial de suas vidas, dediquei algum poema ou alguma canção, como forma de solidariedade ou contentamento. São poemas e canções exclusivos - portanto, contextuais. Você será exceção, pois somente os homenageados receberam um exemplar. Foi uma forma de conseguir ficar, quando eu houver partido para a saudade. Espero que o leia com ternura, pois foi somente por ternura que escrevi e dediquei à minha família e a pessoas especiais em momentos especiais.
Juvenal, para encerrar, quero segredar-lhe que me apóio em duas pilastras neste final de vida: Paciência e Coragem. Paciência, para suportar, coragem, para enfrentar. Eu e a Gleiyde desejamos-lhe, com muito afeto e saudade, que nossas colunas possam sustentá-lo também.
Joaquim
Guará, 21 de junho de 2.007
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AS CINZAS DO MEU IRMÃO


Na vida cada um é cada um. Verdade que demoramos a aprender. Queremos que os outros sejam o que deles esperamos. Esse é o fundamento da grande batalha humana. Meu irmão Jayro acaba de falecer e escolheu na morte a mesma solidão que cultivou na vida. Pediu aos filhos que cremassem seu corpo, quem sabe para não compartilhar na morte das companhias que sempre recusou em vida. Era um solitário por índole.

Nunca conseguiu conviver com os pais, com os irmãos, com a mulher, nem com os filhos. Com os amigos, às vezes. É certo que não agia assim por maldade ou desídia. Apenas queria ser só. Viveu isolado de tudo e de todos. Passava anos sem aparecer. Deus sabe por onde andaria. Não tinha outros vícios senão o de ser sozinho. Nem por isso foi um ermitão ou um inútil. Apenas não se deixava estimar. As pessoas tinham por ele um respeito quase religioso pelo algo de messiânico que moldava sua conduta. Se fosse um pregador arrastaria multidões. Tinha carisma.

Plantou cafezais, cultivou pastagens, estudou a terra que sulcava reverente com as mãos e com as máquinas. Ao mesmo tempo era um ser primitivo e também um homem de conhecimentos. Sua solidão o levou sempre a preferir ser empregado que patrão. Não gostava de mandar no que fosse dele, porém mandava bem no que era dos outros. Por isso era requisitado. E dava conta do recado. Foi vereador mas não gostava de associar-se a ninguém, nem a nada. Não queria mais do que ser ele mesmo. Pensava como Ibsen que o homem só é o mais forte. Agia com retidão para não fazer concessões.

Não foi fraterno com seus pais, com os irmãos, com seus filhos nem consigo mesmo. Era coerente no seu voluntário isolamento. Viu a sorte escapar-lhe pelos dedos inúmeras vezes e a dor ocupar o abismo que as tragédias abrem em nossos corações. Um de seus filhos suicidou-se jovem ainda. Gesto que abriga um infinito de motivações e nenhuma definitiva. A verdade se vai com o ato tresloucado.

Nunca o vi chorar nem gargalhar. Apenas sorrir. Talvez não quisesse ficar refém da felicidade, nem exaurir-se em sua busca. Acredito, como irmão, que a alegria o incomodasse. A ventura é como uma iguaria saborosa que uma vez degustada nos faz escravos da culinária que a produziu porque queremos prová-la sempre outra vez. E sofremos quando a receita desanda.
Uma vez uma de suas filhas me disse “nem sei se tive um pai”. Tinha razão, porque também não tenho certeza de que foi meu irmão, tão separados vivemos sempre.

Morreu no seio de sua segunda família e pediu que cremassem seu corpo. Quis continuar só na morte sem deixar vestígios que fossem como pegadas que seguidas poderiam levar a ele. Não quis compartilhar de nenhum jazigo coletivo. Pediu que suas cinzas fossem espargidas num resto de floresta perto da qual consumiu seus últimos dias para voltar a reintegra-se à Natureza que sempre amou e de onde saiu um dia na forma humana que lhe deu nossa mãe que cada um de nós amou a seu jeito e ele ao seu. Nunca fez alarde do seu carinho que ela esperava reticente pedindo que compreendêssemos porque ele era assim... E assim era mesmo. Ele era o Jayro que uma vez viajou quilômetros para me levar ao cinema, o que não conseguiu, produzindo em mim a mais forte recordação que tenho dele. Recordação na forma de uma saudade que hoje, na velhice e na doença , me faz lembrar dele por algo que me quis fazer e não fez.
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O ÉBRIO - A HISTÓRIA DE UM FILME



Esperei aproximados 60 anos para ver O ÉBRIO, filme de grande sucesso do cantor Vicente Celestino. Dia destes, estava só em casa e indeciso coloquei a cópia no aparelho. Quase desisti. No átimo desse titubeio e no silêncio mágico daquele momento voltei sessenta anos atrás. Devia ser lá pelos anos quarenta. Apesar de ser uma produção do então desprestigiado cinema nacional, o filme era um estrondoso sucesso..

Eu andava pelos meus 14 anos e já era fã de cinema. Comprador assíduo da Cena Muda. A magia daquele mundo de sombras me seduzia. O grande empecilho era estar estudando como aluno interno no Colégio Salesiano de Tupã. Os padres não permitiam saídas, nem a poder de rezas. E o que se fazia muito nesse internato era rezar. Maliciosamente escrevi ao meu Irmão Jayro, por saber que ele era fã ardoroso da voz do Vicente Celestino, sugerindo que viesse ver o filme em Tupã, porque demoraria muito a ser levado em Osvaldo Cruz. Na verdade não era nele que eu estava pensando, mas em mim mesmo. Ele vir ver o filme ou eu sair do internato eram possibilidades remotas. As regras do internato eram monacais e percorrer aqueles 50 quilômetros para atender ao capricho de um irmão caçula era fazer uma viagem que incluía a necessidade de um pernoite em hotel, no mínimo. E meu irmão nunca fora dado a esses arroubos fraternais.

Mas surpresa!!! Depois do jantar, um bedel anunciou que eu tinha uma visita na portaria. Lá estava meu irmão em carne e osso. Magro como sempre foi, era mais osso do que carne. Ir ao cinema já era por si algo pecaminoso para os padres e, ter que me ausentar do internato, tornava a coisa mais proibitiva ainda. Não houve argumento que demovesse o severo Padre Diretor. Meu irmão foi ver o filme sozinho e eu, aniquilado, tomei o rumo do longo dormitório dos alunos internos. Depois do “Benedicamus Dominus”, as luzes se apagaram e o silêncio se fez pesado. Dormi frustradíssimo. Inaugurei nessa noite uma de minhas primeiras revoltas contra as injustiças humanas. O que custava, meu Deus?...

Perdi a minha primeira oportunidade de ver O EBRIO. Perderia outras tantas em alguns poucos relançamentos do filme. E o tempo foi passando. Sinto que desenvolvi uma certa resistência em ver esse filme. Talvez tenha sido o desencanto pela injustiça dos padres. Ou, talvez, um medo inconsciente que a qualidade do filme me decepcionasse de alguma forma. Um certo receio de voltar a sofrer por um motivo ultrapassado. Mas nunca de todo superado.

Vieram, depois, a tela panorâmica, o cinemascope, o cinerama, a terceira dimensão, a televisão, o videocassete, o DVD, e a mídia dominou o mundo. Em contrapartida acabaram-se os cinemas.... e O EBRIO permaneceu no limbo de minhas lembranças. O filme não tinha apelos para uma transposição em vídeo por ser um procedimento de alto custo. Mas como nem tudo na vida está perdido para sempre, um dia veio a merecer uma versão em videocassete disponível apenas para locadoras. E aconteceu mais uma vez minha recusa em recorrer ao aluguel para assisti-lo. Finalmente uma edição em DVD me venceu e comprei uma cópia.

Ver o filme que é bom, nada. Só agora uma conjunção de forças me levou a essa extrema decisão. Juro que vacilei. A solidão, o silêncio, o sereno lá fora... os cães em plácido repouso... Ninguém para fazer perguntas inoportunas. Nenhuma testemunha se ao final eu chorasse pela saudade daquele momento único como se fosse um corte na minha história tão vazia de significados.

Vi o filme, adivinhado as cenas que já conhecia de tantas reportagens sobre essa obra tabular do cinema brasileiro. Esperei com ansiedade o momento em que o personagem, devastado pela bebida, diria a frase tabular do melodrama: “Eu disse que perdoava, mas não disse que me reconciliava”. A sentença ficou tão famosa como o improvável “play it agaim, San” de CASABLANCA. Lembram-se? Os cinéfilos de carteirinha se lembrarão de uma coisa e de outra.

Chorei entristecido, menos pela história e mais por saber que todos aqueles atores, e mesmo um inadvertido cão que perpassa a cena estão todos mortos. Uns deixaram memória. A maioria não. Fiquei atento aos créditos. Encontrei poucos conhecidos. Excluídos os personagens principais, todos, todos mortos ou de destino ignorado.

Se gostei do filme? Não cabe aqui esta avaliação. Certamente não é bom. É uma relíquia. E de uma relíquia não se registra a beleza. Registra-se a evocação. No filme o ébrio da historia confessa que bebe para não se lembrar das dores sofridas, e nesse sortilégio só fez tornar imortal a canção e seu cantor que “na bebida busca esquecer”... Eu mesmo, naquele momento cumpria esse cruel vaticínio porque embora relutante por tanto tempo quis relembrá-lo numa noite em que sua voz deve ter ecoado pelo silêncio de minha vizinhança... Sessenta anos depois que meu irmão Jayro a ouviu num remoto cinema da cidade de Tupã... talvez tão só como eu nessa madrugada.

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LEMBRANÇAS DA CRISTINA

Cristina não saberá que me lembro dela. Lembro e muito. Cristina morreu faz anos. Era uma figura de mulher excepcional. Foi minha colega de trabalho no SESC. Sempre chegava atrasada para desespero de seus chefes e com aquele ar cansado de quem tinha ido dormir tarde.

Um dia chegou ao trabalho estremunha como sempre dizendo que eu me parecia com o Millor Fernandes com quem estivera numa boate entre amigos. Não me atrevi a perguntar por que viés do grande humorista se dava aquela parecença. Se dissesse que era pelo lado da fisionomia eu me sentiria um pouco frustrado. Hoje quando me vejo no espelho, tenho quase certeza que ela diria que a semelhança era pela cara mesmo. Nem sonhar que fosse pelo talento do humorista. Ou quem sabe, porque naquela época eu era bem metido a engraçadinho. Cristina era magnânima.

Não era mulher de rara beleza. Tinha, porém, aquele condão feminino de encantar as pessoas de espírito solerte. Longe de mim pensar que fosse um deles. Era incrível seu rol de amizades entre os artistas de todos os gêneros que pontificavam naquele inicio dos Anos de Chumbo, quando começava a se firmar o poder arbitrário dos militares aboletados no poder da nossa sempre vulnerável democracia. Essas lembranças me tomaram de assalto ao receber um e-mail do um antigo colega de trabalho que me precedeu na amizade com a Cristina e dela conservou também um punhado de boas lembranças. Revelou-me que quando a conheceu era namorada do cantor Caetano Zema então começando a ter sucesso na MPB daquela época. Parece que Zena não resistiu ao tempo... eclipsou-se nos calcanhares da fama.

Escapulindo aos deveres do serviço era delicioso ir tomar um cafezinho com a Cristina na esquina da São Luiz com a Praça da Biblioteca por onde trafegava a mocidade boemia e engajada daqueles dias. No átimo entre um café e outro sua companhia era sempre uma caixinha de surpresas. Seu visgo de mulher sedutora atraia sempre um desfile das celebridades emergentes naqueles meus dias deslumbramento com a grande cidade. Vinham ter com ela com a descontração das velhas amizades nomes ainda não tão famosos como Ronaldo Boscoli e Geraldo Vandré. Falavam de nomes ainda não tangidos pelas fímbrias da fama como Maysa, Tom Jobim, e Vinícius ou, então, das arbitrariedades dos militares. Algum amigo caído nas garras da repressão. Eram tempos que ainda não se combatiam com fuzis nem metralhadoras, mas com a letra das canções de protesto.

Cristina era íntima do pessoal da Bossa Nova com quem convivia em noites de vinho e de rosas para no dia seguinte “bater cartão” e encarar um trabalho de melancólica burocracia. Chegava mal dormida, porém nunca com a empáfia de sua intimidade com a fama.
Uma noite convidou-me para um gole no bar do Teatro Ruth Escobar onde levavam a peça Hair. Segredou-me que esperaria um namorado e não queria esperar sozinha. E o pior: talvez eu tivesse que voltar sozinho para a cidade. Tive. O namorado chegou para os mistérios da noite onde, certamente, não haveria lugar para mim. O namorado era o Nuno Leal Maia no fragor de sua exuberante mocidade.

Conheci dois dos maridos da Cristina, ambos de marcante atuação naquele pequeno mundo da intelectualidade paulistana dos anos sessenta. Um deles era o Massao Ono importante editor e animador cultural no mundo livreiro.Foi o primeiro a editar o meu amigo, poeta “beat-nick”, Roberto Piva. O outro foi Lúcio Kovarick professor da Usp. Visitei-a nesse dois casamentos ainda como seu colega de trabalho. Numa noite, no apartamento da rua Cesário Mota tive duas surpresas. A primeira foi a sopa de tomate feita em horas tardias pelo Carlos Alfredo e a segunda foi quando alta madrugada toca a campainha e chega Rogério Sganzerla já famoso com seu filme O Bandido da Luz Vermelha.

Cristina era assim, uma abelha mestra cercada de zangões da mais alta estirpe cultural daqueles dias em que a mocidade ia passando célere sem que percebêssemos as marcas que deixaria em nossas lembranças. A vida para nós ainda era conjugada no presente contínuo dos verbos.
Há pouco tempo lendo um livro de Mário Prata, lá encontro Cristina no rol de suas amizades mais indeléveis. Cristina não escrevia, mas estava em todos os lugares e produzia histórias. Mesmo sendo seu amigo bissexto vivi tantas com ela.

Um dia nossos caminhos se separaram. Ela deixou o SESC onde continuei e não soube mais de suas andanças. Vim a saber que seu pai era médico e que sua mãe se chamava Cleópatra – nome que detestava, com toda razão. A Cristina, sim, tinha algo da rainha do Egito que encantava os homens e destronava heróis da história. Cristina deve ter se destronado a si própria nas asas dos sonhos dourados que vivemos letárgicos na penumbra dos bares e no convívio com os anjos que trazem a beleza da arte e o delírio da vida no cortejo que seus vôos noturnos.

Soube muito vagamente que faleceu em Brasília vítima de um desses males que a gente mesmo inocula na carne como um avatar de suicídio involuntário e que nos exonera da vida. A tristeza? A bebida? A desesperança? Que vontade louca me deu de ver a Cristina... agora só no céu, se tivermos a sorte de ser escalados para essa viagem.
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OBTUARIES

“GOOD NIGHT, SWEET PRINCE, AND FLIGHTS OF ANGELS SING THEE TO THY REST”
Parece que vou me enveredar por um sendero funéreo. E vou mesmo. Pretendo, entretanto, pegar leve. Acontece que há alguns anos assino uma revista americana de cinema - dos tempos em que se era feliz e se morria em preto-e-branco - que traz um vasto obituário das pessoas ligadas ao cinema que faleceram aproximadamente no período de cada edição mensal. É morte para funerária nenhuma botar defeito. A revista se chama Classic Images e não é nenhum primor gráfico. Acostumei-me a ir direto a essas páginas para saber quem se foi desta vez e para sempre. Claro que os distintos defuntos mais famosos invadem os noticiários da “mídia” muito antes da revista vir a lume. Assim o necrológio da revista é meio requentado. Salvo no caso de nomes que lamberam a fama apenas de raspão, e outros que já se lambuzaram nela há muito tempo e hoje estão esquecidos. Mas a morte, muitas vezes, ´é que melhor explica a vida.

Não cultuo a morte a não ser a minha própria que vou adiando sempre que posso com a ajuda dos esculápios de plantão. Graças a eles, tão empertigados, com seus prateados estetoscópios no pescoço é que saltamos de uma média de 30 anos de vida para mais de setenta. Nem por isso os cemitérios com seus indefectíveis habitantes deixam de exercer um certo fascínio em mim. E de quebra a morte também.

Os cemitérios são a última morada de quem lá chegam, sem deixar de ser adoráveis pontos de atração turística, para aqueles que podem voltar, claro. Entre os mais visitados está o Pere-Lachaise de Paris, onde estão Chopin, Balzac, Abelardo e Eloísa, Edit Piaf, Oscar Wilde, Maria Callas e tantos outros nomes do nosso convívio cultural São um pouco nossos mortos também. Em Buenos Aires sempre se pergunta por La Ricoleta, onde está Evita Perón. No cemitério da Consolação estão a Marquesa de Santos, que faz milagres segundo alguns, e a atriz Iália Fausta. Cacilda Becker está no Araçá. Nossos mortos mais recentes, Ayrton Sena e Ellis Regina estão no Morumby... E la nave vá.

O cemitério de Hollywood tem o sugestivo nome de FOREVER. Equivalente, mais ou menos, ao nosso “Saudade” . Estive lá uma vez. Não vi tantos nomes famosos como esperava. Estes são mais numerosos na Calçada da Fama onde chegaram e saíram vivos. Muitos destes debandaram aos primeiros rugidos da velhice e foram morrer em outras plagas. Outros preferiram a cremação e suas cinzas vagueiam microscópicas pelas ondas do mar.

Impressionou-me, de dar um nó na garganta, a tumba de Tyrone Power. Quem viu seus filmes sabe que ele foi um homem despudoradamente bonito, porém, nunca fez pose de belo. Aceitou quase todos os papeis que lhe ofereceram. Tirou de letra a pecha de “galã” aplicado aos atores sem muito talento. Casou-se duas vezes. Teve filhos. Nunca se importou com os sussurros de que fosse homossexual. Flanava por sobre todas essas misérias humanas. Morreu ainda na maturidade sem chegar à velhice e trabalhando. Caiu em cena como se interpretasse o último papel de sua vida, tendo ao lado a bela Gina Lololobrigida. Por isso ganhou um epitáfio saído da pena de Shakespeare que ele não ousaria interpretar, mas que é um especial fotograma de sua alma. A sentença, que se lê no pórtico deste texto, está num inglês arcaico, e recomenda aos anjos esse memorável ator:

“BOA NOITE DOCE PRINCIPE E VOE ATÉ OS ANJOS QUE CANTAM PARA SEU REPOUSO”

- não é de chorar?
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MEU VIZINHO RAUL ROULIEN


Leio longa matéria de Ruy Castro, no Estadão, que me foi enviada pelo Flavio, amigo de Campinas. Conta a história do primeiro ator hollywoodiano brasileiro que pouca gente conhece: Raul Roulien. Eu também quero meter minha colherinha de café nessa história. Um verdadeiro golpe da sorte me fez dele um quase amigo. Ou, pelo menos, um dia, vertemos lágrimas uníssonas.


Sabedor de sua fama fugaz no cinema americano (para dizer pouco, participou do filme que lançou a dupla Fred Astaire e Ginger Rogers), lá por volta dos anos 35, do último século, tive curiosidade de saber se ele estava vivo ou morto e mais que isso por onde andaria. Empenhei-me até o limite iam minhas forças e meus relacionamentos. Pergunta daqui, pergunta dali e nada. Ninguém sabia onde estava e poucos quem fosse essa figura. O máximo que me diziam é que devia estar metido em propaganda e que eu pesquisasse junto as agências. Não me dei a esse trabalho e fiquei guardando a curiosidade enquanto comprava o quase nada que havia disponível sobre o ator. Aliás, cantor também. O melhor que consegui foram algumas fotos em revistas como Cinearte e Scena Muda bem antigas. Algumas delas com ele na capa. Consegui a duras penas um livreto do Museu Da Imagem e do Som com sua reduzida biografia. Já era alguma coisa. E a busca prosseguia.


Queria mais. Saber onde estaria essa fugidia efígie. Vivo? Morto? Faltou-me lembrar apenas de uma velha prédica de meu ex-chefe Amin Aur segundo a qual devemos “insistir no óbvio” em qualquer circunstância. Pois não me ocorreu a lista telefônica, logo ali, empoirada nos subterrâneos da mesinha de revistas da sala do apartamento. Pois bem: paga-se pela burrice. Precisei pesquisar o telefone de alguém com o sobrenome Rodrigues. E Rodrigues começa com “r-o” assim como Roulien. Não é que antes do Rodrigues, encontro o próprio Raul Roulien? Era de não se acreditar. Ali estava seu nome inteiro, em prosa e verso, e principalmente número do telefone, endereço com todos os efes e erres.
Podem me chamar de mentiroso que não reclamo ao bispo. E provo com escrituras, extratos bancários, conta de luz e outras formalidades. Eu morava na Rua Brasilio Machado n. 292 e o Raul Roulien no prédio em frente, num número ímpar como mandam os dispositivos municipais, não mais que 293 ou 297. Um pequeno edifício muito meu conhecido porque o achava bonitinho e cobiçava ter um apartamento nele. Mais que isso, seu zelador já havia ocupado o mesmo cargo no prédio em que eu morava. Tudo em casa. Claro que telefonei imediatamente. Atendeu-me sua terceira (ou seria outro o ordinal?) esposa . Era sabedor de seu segundo casamento com a então famosa na época Conchita Montenegro. Sabia ainda que uma tragédia se abateu sobre sua primeira mulher, morta atropelada por alguém não menos que John Huston sabidamente embriagado. Num rumoroso processo Roulien ganhou a causa indenizatória, mas perdeu as chances de continuar no cinema americano. Não gostaram da petulância daquele latinosinho nas barbas de Tio Sam. Mas isso são outras estórias.


Pelo telefone fui informado, gentilmente, que o meu inesperado achado estava muito mal, com esclerose avançada e não falava mais. Mas que se olhasse pela janela do meu apartamento o veria no portão do prédio tomando Sol, assistido por um enfermeiro. Perguntei se poderia chegar até ele e a gentil senhora concordou, achando que não conseguiria muita coisa. Mesmo assim muni-me das revistas que tinha com as fotos do ator, principalmente na capa, e desci correndo. O enfermeiro concordou sisudo com minha aproximação e ao ver as revistas com as fotos de seu assistido até que melhorou a cara.


Este não é um momento para se descrever com detalhes. Senti-me um pouco constrangido com meu gesto intempestivo. Ao mostra-lhe as fotos os olhos do Raul se acendiam como numa revelação e sem poder dizer nada chorava, chorava muito. Não resisti e chorei também. Delicadamente seus dedos trêmulos tocavam os botões de minha camisa o que me enternecia mais que minha resistência podia suportar. . Chorávamos ambos.


Voltei a vê-lo mais algumas vezes. Aproximava--me com cuidado. E antes das lágrimas me afastava. Claro que chorando assim mesmo. Um dia o zelador me parou na rua para dizer que “seo” Raul tinha morrido. E acrescentou que subindo ao apartamento para socorrer a viúva nas demandas da morte viu que havia muitas fotos de gente famosa com quem ele convivera no passado. Mal podia ele imaginar quanto.


O MAU PASSO DE INGRID BERGMAN

Há alguns anos gravei da TV o filme STROMBOLI que marcou a estréia da grande atriz Ingrid Bergman no cinema italiano, depois de ter abandonado estrepitosamente sua carreira em Hollywood. Esse detalhe não vem ao caso. Cada um casa com quem mais lhe apetece. E Ingrid deixou um casamento sereno para cair nos braços e um italianinho gordo, careca e (dizia-se) de muito talento, chamdo, todos sabem, Roberto Rosselini, na ´poca casado com outra grande estrela, essa italiana mesmo, Anna Magnani. Foi chumbo para todos os lados. As revistas de fofocas e outras nem tanto se esbaldaram. Logo depois do fim da 2ª. Grande Guerra o filme ROMA, CIDADE ABERTA, de Rosselini, abalou as estruturas do cinema americano pondo de lado o glamour dos estúdios e inundando as telas com o que se convencionou chamar de neo-realismo. Ou seja, uma nova maneira de mostrar a vida como ela é. Sem os maneirismos do cinema ameriano que, então, dominava o mundo Pegou.

Ingrid Bergman conta em sua biografia que ficou fascinada quando viu esse filme, levado despretensiosamente num cineminha de bairro de Los Angeles. Pensou logo que era seu dever de artista aderir a esse novo chamamento da arte cinematográfica. Enviou um telegrama ao diretor Rosselini onde dizia que se ele precisasse de uma atriz com sotaque sueco era só chamá-la que ela iria. Conta-se que quando o telegrama chegou ao seu destino, o escritório de Rosselini foi vitima de um pequeno incêndio e quase toda a papelada se perdeu. Como o destino escreve certo por linhas incertas, algum tempo depois o pequeno papelucho com a mensagem chegou ao conhecimento do diretor. Bem, resumindo a ópera tornaram-se amantes, casaram-se fizeram filmes e fizeram filhos. Hollywood perdeu sua grande estrela, bela, talentosa e fidelíssima esposa de um dentista que veio com ela de sua Suécia querida, quem sabe para reviver o mito de Greta Garbo. O que de certa forma reviveu.

STROMBOLI estava há anos na minha coleção do filmes gravados. Não sei bem, mas creio que por um certo desencanto com a atitude de Ingrid Bergman nunca tive vontade de ver o filme. Nem nos cinemas quando foi lançado aqui no Brasil, nem quanto passou na televisão. Já previa minha decepção. E não deu outra. O filme aqui para meus botões é uma droga. Não chega a lugar nenhum e tenta a todo tempo compor ângulos exploratórios com a rosto da ainda bela estrela, numa crassa imitação das belas fotografias americanas que sabiam como ninguém valorizar a beleza de suas estrelas.

Durante a evolução do pobre enredo de uma refugiada guerra (loira e sofisticada) que se casa por necessidade com um pescador italiano fiquei pensando no mau passo que deu Ingrid Bergman com essa mistura de amor e arte vindo a cair em dois sacos sem fundo: o próprio Rosselini e seu destino como atriz . Nenhum dos dois produziu outro sucesso igual àqueles que os fizeram amantes e esposos. Se o amor valeu a pena, então ta. Que belos filmes ainda teria feito ela se permanecesse nas mãos dos competentes e profissionais diretores americanos, bastando citar Hitchcock, entre tantos outros de igual quilate. Sua beleza continuaria sendo valorizada. Seu talento explorado, sua vida seguiria mansa e sem tropeças ao contrario do torvelinho em que se meteu nos braços do italiano gordinho e fazedor de filhos. Vendo Stromboli me ocorreu que no ano de seu lançamento surgiu aqui no Brasil a tentativa da Vera Cruz de fazer filmes com engenharia mais profissional. O primeiro filme dessa empresa, CAIÇARA foi, garanto, levemente inspirado em STROMBOLI, seja na história, seja em certas seqüências onde a ilha vulcânica da Itália e substituída pela natureza rude de uma ilha do litoral paulista na qual se passa o filme brasileiro. Ambos frutos do pacote pretensamente desmistificador do “realismo italiano” que noves fora teve lá seus méritos. Pelo menos sacudiu a arte de fazer cinema que nunca mais foi o mesmo.
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Nota. Tenho o filme Stromboli e de quebra Ciçara também. Se alguém quiser conferir esta e outras afirmações é só pedir. Meu “personal copietor” João terá prazer em enviar-lhes. Beijos.

MINHAS RELAÇÕES COM HOLLYWOOD

O título pode ser cabotino e pretensioso. E é mesmo. Só conheço a capital do cinema pela rama. Como diz a Lygia Fagundes Teles todo aquele que escreve é um dissimulador. Eu não sou diferente. Aumento aqui,diminuo ali. Sempre a meu favor, claro. Até quando admito meus erros e minhas fanfarronices. E os vexames - ái meu Deus! – que vergonha de alguns deles. Se os conto é sempre do meu modo.

Sempre gostei de cinema. Nem sei porque. Ninguém me incentivou para isso. Apenas aconteceu. Assim como um destino. Imagino até que seja por narcisismo: me projetava na figura romântica dos atores. Devia querer ser igual ao que eles eram na tela. Nem imaginava que pudessem ser diferentes na vida real. Para mim eram o que diziam deles (e sempre bem) as revistas e suas próprias imagens no escurinho dos cinemas. Personificavam sempre a felicidade, finalmente alcançada depois de alguns percalços. Sou da época do “happy end” obrigatório por lei nos Estados Unidos. O bem vencia sempre. O cinema tinha que ser educativo. E assim foi por muitos anos.

Imagino que o cinema foi uma mosca perversa que me mordeu um dia. Até os oito anos morava em uma fazenda sem qualquer contado com alguma coisa que ao menos de longe se parecesse com cinema. Um dia minha avó morreu – ou terá disso meu avô? Naquela época, final dos anos trinta, a morte removia montanhas. As famílias se reuniam ao peso de muito sacrifício. Tirava-se fotos. Chorava-se. Vestia-se luto. Meu pai alugou um fordeco e lá fomos nós para o velório. Horas e horas de viagem. A precariedade das estradas fazia tudo mais distante. No meio do caminho, uma parada obrigatória, para os passageiros se aliviarem, lancharem, esticarem as pernas. Essa parada foi em Duartinha que ficava a alguns quilômetros de Espírito Santo do Turvo, nosso destino final.

Não sei se estávamos num bar, num hotel, numa rodoviária. Mas lá longe estava o cinema da cidade. Um cineminha, mas de qualquer forma, um cinema... uma porta larga, a bilheteria, alguns cartazes anunciando os próximos filmes. Um cinema. Ora, um cinema “comme il faut”. . Eu nem sabia como era um cinema. Só alguns anos depois entraria num deles. Senti-me atraído como que por imã. Saí escondido de meus pais e fui até àquela porta misteriosa que escondia mil segredos e que me chamava. Fui, olhei e voltei. O cinema voltou comigo. Para sempre.
O cinema era uma coisa distante. Mesmo depois que me tornei intimo dos filmes e das programações, o cinema era algo que existia lá em Hollywood. Não havia como tocar as fimbrias de sua essência. Apenas suas sombras chegavam em forma de imagens às telas no retângulo sombrio das salas de projeção. Terminada a sessão, a claridade do dia lá fora ou o lusco fusco das luzes noturnas quebrava todo aquele sonho feito de sombras e sons na tela. Essa foi para mim a magia do cinema por muitos e muitos anos. Magia que foi se quebrando aos poucos... tão aos poucos que eu mesmo não percebi.

Minha alma queria sempre desvendar os segredos guardados pelo muro intransponível que havia para além daquelas imagens que se desvaneciam ao acender das luzes. Creio que persegui esse mistério a vida inteira. Será que não o persigo ainda?


Primeiro foram os títulos em inglês. Toda manhã ia à porta do cinema na minha pequena cidade e copiava o título dos novos filmes em inglês para traduzi-los em casa. Aprendi, pelos, menos que quase nunca eram fieis ao original. Mas isso pouco importava. Ajudava-me entender melhor a proposta dos enredos. “Now, Voyager” era “Estranha Passageira”... bem, forçando a mão até que era a mesma coisa.

Depois vieram as cartas. Descobri que podia escrever para os artistas e eles mandariam fotos autografadas. Foram centenas de cartas que me traziam aquela gente distante e quase irreal que me tocavam a alma como um santo toca o espírito dos crentes. Existiriam além daqueles sorriso glamurosos? Todo esse “tour de force” resultou num vasto álbum que hoje repousa num quando das estantes que guardam restos de minhas memórias. O que farão destes sorrisos os que vierem depois de mim? Nada, certamente.

Então, o cinema se tornou uma arte séria. Tema de leituras, discussões, infindáveis polemicas sobre diretores, atores, revistas especializadas. Uma vontade louca que o cinema nacional fosse tão bom como o estrageiro. Mas não era. Será agora? Com a inauguração da Companhia Vera Cruz imaginava que a rua São Luiz em São Paulo bem que poderia se transformar na nossa Via Vêneto onde se embebedavam as figuras mais decantadas do cinema italiano. Ou, então, a Boate Mocambo de Hollywood em cujas mesas se podia ver a nossa Carmen Miranda em reportagens da revista Carioca ou A Cena Muda. A vida é sonho... como dizia Calderoan de la Barca.

Triste é quando os sonhos se desvanecem . Um dia me vi trocando recadinhos com dois ou três daqueles mitos etéreos do cinema da minha mocidade. Não com muitos, nem com os mais famosos que já havia se despedido ao peso bruto da morte. Mas, de qualquer forma, gente daquele mundo fugidio que o vento levou. E levou mesmo, porque hoje nem existe sombra daquela Hollywood que eu sonhava como se fosse um conto da Caronchinha... A Caronchinha que se carunchou.

Um dia me vi em San Diego, na Califórnia, ali pertinho de Hollywood. Achei que não devia perder a ocasião de conhecer a já velha capital do cinema. Reservei uns caraminguás e num fim-de-semana tomei um ônibus fui lá. Não vi quase nada. Nem ao menos uma sombra da Betty Grable cruzando a Sunset Boulevard, ora pois. Apenas me senti pisando o mesmo chão que um dia fora palmilhando por grandes celebridades que povoaram meus sonhos.

Depois foi o “BOY, o mais famoso dos filhos de Tarzan que eu conheci pelo nome - Jonhny Sheffield – e de quem recebi algumas fotos naqueles tempos das cartas que chegavam a velha agência dos correios de quando a cidade de Osvaldo Cruz ainda se chamava Califórnia. Era uma grande emoção a chegada daqueles envelopes com o nome estampado daquelas celebridades tão distantes quanto etéreas. Mas um dia... um dia chegou a Internet e tudo ficou mais fácil e mais banal. Um dia me vi trocando e-mails com o próprio Boy, agora, um velho senhor, comercializando seus filmes antigos e a procura de compradores. Claro que um comprador do Brasil – esse pais distante – chamou sua atenção e ele quis saber mais do meu interesse. Chegamos a “conversar” futilidades. A construção de sua casa nova em Chula Vista, as filhas... enfim, ele como gente e não como a figura buliçosa, montando elefantes na selva africana que eu aprendi a gostar nas telas das matinês.

Outra foi Dorothy Lamour, com seus longos cabelos negros. Estava em Nova York fazendo um curso a mando de minha empresa. Ligo a televisão bem de manhãzinha e quem me aparece num programa bem ao estilo da Ana Maria Braga? Ela própria falando de sua autobiografia cujo lançamento seria por aqueles dias e convidava seus fãs. Claro que fui. E lá estava ela já sem seus longos cabelos negros de “rainha das selvas” e autografando The Other Side of the Road. Não comprei , por pura timidez e por economia também. Apenas me contentei de ver a grande estrela. Um pouco mais de atrevimento e coragem e teria falado com ela. Hoje lamento ter perdido essa grande chance.

“Quem procura acha”: nada mais verdadeiro. Ao longo da vida continuei dando chances à sorte para encontrar esses antigos avatares da memória. Recentemente fiz uma inusitada amizade com uma antiga estrela de Hollywoood que não chegou a fazer fama por aqui. E quando digo aos amigos que recebi um e-mail de Sara Shane todos perguntam assustado: quem é essa? Eu sei, é o que importa. Seus filmes não fizeram sucessos por aqui. Na sua envelhecida memória ainda fulguram cenas e personagens daqueles dias que o cinema povoou de sonhos minhas ilusões. Sara me mandou uma foto. Claro que de quando era bela e tinha o brilho de uma estrela fulgurante. . Hoje, envelhecida, é como os santos para os crédulos. Os santos são figuras intimas do paraíso, porque vivem lá. Os velhos ídolos também surgem trazendo nos restos de memórias esgarçadas lembranças de um mundo de sonhos que fazem grande alvoroço em nossa imaginação.

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Preciso enviar um e-mail à Sara Shane com a foto de minha cadela que teve cinco filhotes porque ela me disse que também teve vários cães, os quais amava e que hoje estão no “heaven of dogs”... espero que se agrade com a notícia que vou lhe dar.


UMA VIOLA DE DIAMANTES


A biografia de Truman Capote no cinema me emocionou. Autor bissexto Capote foi um escritor muito irregular. Mesmo assim considerado dos maiores nos Estados Unidos no século vinte. Sua obra pra valer se resume a dois livros: Bonequinha de Luxo e A Sangue Frio. Conheci-o através de um conto que de vez em quando releio e que de certa forma é premonitório de seu contado com os dois jovens criminosos que assassinaram uma família indefesa no Kansas, tema de A Sangue Frio sua obra definitiva. Uma Viola de Diamantes é a pequena história de um romântico delinqüente latino que cumpre pena por roubo numa granja prisional e que nas noites de luar costuma dedilhar sua viola cravejada de falsos diamante. Tão sem valor como sua própria vida. No frio dormitório da prisão coube-lhe um catre ao lado de Mr. Schaeffer, outro prisioneiro já de idade avançada. Ambos se afeiçoam. Numa manhã nevoenta ambos põem em prática um audacioso plano de fuga. O velho sabe que não terá forças para transpor os limites da prisão e quer apenas ajudar o amigo que tem pela frente uma vida inteira enquanto ele só tem a morte. Tico Feo é o nome do rapaz que ajudado pelo vigor de sua juventude ganha el mundo e Mr. Schaeffers herda, apenas, sua viola de diamantes que mal dedilha nas noites solitárias imaginando o amigo, quem sabe, cruzando uma rua sórdida de La Habana.

Truman Capote, foi ele mesmo o melhor personagem de suas histórias. Um renomado e incorrigível enfant terrible até morrer ao sessenta anos por excesso de alcholl e comprimidos. O filme não conta toda sua vida restringindo-se ao período em que se relacionou com os dois criminosos e com os quais veio a ter uma controvertida relação de afeto e cinismo. Como o velho prisioneiro do conto também se apaixonou por um dos jovens condenados à morte. Histriônico e careteiro tinha voz melosa e fazia coreografias com as mãos ao falar. O conteúdo de suas frases era sempre carregado de ironias e maledicências. Dava festas fabulosas e era atração esperada em todas as outras até que caiu em desgraça e passou longos anos no ostracismo pelas maldades que cometeria até que cometeu algumas que o high society nova-iorquino não lhe perdoou aplicando-lhe o devido corretivo.

Como as duas figuras que biografou no romance-reportagem A Sangue Frio ele também era filho escorraçado de uma família desorganizada que foi sempre indiferente a sua educação e seu futuro. Sentia-se como se fosse da mesma família dos condenados. Como se eles tivessem saídos para o mundo pela porta dos fundos enquanto que ele saiu para porta da frente. Tiveram destinos diferentes mas oriundos da mesma matéria humana.


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UMA DOR MUITO GRANDE


Não sei quantas vezes meu coração foi visitado pela tragédia. Nem sei se foi alguma vez. A fita métrica com que se medem as grandes e as pequenas dores são elásticas e sua matéria é o sentimento que não tem peso nem medida. A tragédia é única em cada coração. Nem para dois irmãos que choram a mesma perda são iguais.

Já tive grandes perdas. Nenhuma com a chancela da tragédia. Foram todas eventos da vida. Da minha vida. Certamente esses mesmos eventos marcaram outros corações com diferentes intensidades. Nunca senti o torpedo de um pranto lancinante. Nem sei se vou sentir um dia. Os sentimentos também são aprendidos com o beabá da infância. Por isso me espantei, com o meu espanto, quando li entre os e-mails que recebo diariamente um que se anunciava como “uma dor muito grande”. Era meu amigo Cláudio que foi tangido pela tragédia de ter um irmão no avião da GOL que se acidentou matando todos os passageiros. Desde esse momento passei a ver o noticiário do desastre pelos olhos do meu amigo. Foi a maneira pela qual a tragédia me atingiu. E atingiu de resvalo, mas frontalmente, quando para milhões de pessoas do Brasil e de outros paises apenas aguçou-lhes a curiosidade como aguçara a minha até então. Certamente houve aqueles que foram muito mais atingidos do que eu: os parentes, os conhecidos diretos...
O destino não tem regras nem caminhos. Vai criando sua lógica e sua trilha à medida que avança. Contabilizo essa desgraça como a primeira tragédia, digna desse nome, a me sangrar mais fortemente o coração. Por isso mesmo minha solidariedade ao Cláudio. Solidariedade que não ajuda em nada... quase nenhuma solidariedade ajuda alguma coisa, mas é ainda uma forma de sentir as tragédias que se abatem sobre o mundo das verdades e vão além do imaginário dos palcos shakespereanos... e de tantos outros que nos socorreram na busca do entendimento dos sentimentos humanos...

TARZAN EM SEU LABIRINTO


Uma noticia ao mesmo tempo melancólica e evocativa: morreu o filho do Tarzan. O filho verdadeiro. Não aquele das selvas que a censura da época não permitiu que ele gerasse com Jane no calor de uma noite de verão em sua cabana no topo de uma árvore africana. Esse filho, loiro e de olhos azuis não veio pelas asas da cegonha, mas trouxe-o um prosaico avião desgovernado que caiu na floresta e ele salvou com seu grito que arregimentava um exército de elefantes. Esse filho - o Boy - parece que ainda vive setentão num bairro de San Francisco que ostenta o pouco simpático nome de CHULA VISTA. Sei disso porque não pouco tempo troquei e-mails com ele pelas asas da saudade e da Internet.

O filho de Tarzan que faleceu nestes dias não foi gerado pela ficção do cinema. Nasceu de um dos primeiros casamentos de John Weissmuller, num orgasmo indiferente à censura americana que tolheu o cinema por muitos anos e que foi o mais veraz Tarzan do cinema. Recebeu o nome famoso do pai, mas não herdou a sua fama nem a beleza olímpica que lhe valeu o inesquecível personagem nas telas de todo o mundo. O Tarzan Junior morreu anônimo e apenas uma revista de cinema que cultua os velhos ídolos de Hollywood e a eles e seus correlatos dedica uma seção de obituários deu a infausta notícia. Pelo breve texto fica-se sabendo que também se dedicou ao cinema sem sucesso algum. Não passou de um nome perdido nos créditos do final da projeção de alguns poucos filmes.

Talvez o que tenha feito de melhor foi escrever uma biografia de seu pai famoso à qual deu o nome de TARZAN, MY FATHER que eu gostaria de ler. Se alguém tiver o livro me empreste, por favor. Quero saber mais desse herói que acalentou minhas matinês perdidas no tempo e sepultadas no antigo Cine São José da pequena cidade de Osvaldo Cruz. Quero me entristecer mais uma vez de saudades como me doeu no coração saber que o atlético e destemido Tarzan também um dia morreu quase anônimo depois de consumir suas derradeiras chamas de glória numa casa noturna de Acapulco que dedicava a ele uma pequeno espaço na noite dos turistas quando lhe cabia subir cambaleante ao palco para arremedar seu grito de antigamente e com esse esgar ridículo ganhar os trocados de seu último sustento.